Capítulo
Um
Um dia pode começar de várias maneiras.
Essas maneiras variam de incrivelmente incrível a péssimamente horrível. O meu
começou entre esses dois.
Primeiro,
era o que Odete vinha chamando de “O Grande Dia”. Odete é minha tia, a irmã da minha mãe... e eu
tenho que morar com ela. Claro, senão preferiria ficar a quilômetros de
distância!
Minha mãe não morreu. Eu sei
disso, por mais que Odete insista. Eu sinto
que não.
Odete depois chegou e falou,
como se fosse super normal, enquanto eu tomava café:
-Ah, Alexandra, chame sua
mãe!
Eu fiquei sem reação, bem
quieta. Do que ela estava falando? Depois, fiz cara de quem não estava entendo
nada e ela entendeu. Colocou as mãos na testa e tentou sentar no chão,
arrastando na parede até chegar lá. Dobrou os joelhos, escondendo o rosto, e
chorou.
Odete faz isso sempre. Acho
que, na verdade, é desde o desaparecimento de minha mãe, que ela continua
insistindo que está morta.
Ela sempre esquece que ela
não está aqui, enfim, e faz alguma coisa assim.
Minha tia soluçava com o
choro. Sentei-me ao lado dela no chão, passei a mão pelos seus longos cabelos
descoloridos, que atualmente só ficam presos em um coque caído, mas hoje
milagrosamente estava solto. Realmente ela devia ter pensado que se tratava do
“O Grande Dia” com minha mãe.
-Não chora não, tia...
–Tentei consolar.
-Está tudo bem, tudo bem...
–Ela falou.
-Vem, levanta. –Levantei e
estendi a mão para ela se apoiar. Odete tinha – e provavelmente vai ter para
sempre – problemas no joelho e não conseguia se levantar com facilidade sem se
apoiar em mil coisas. Ela já conseguiu até, em uma só tentativa, derrubar um
jarro de suco, um prato de biscoitos, uma panela, três copos e pisou no rabo do
gato dela!
-Não precisava, querida...
–Ela tentou agradecer da maneira que ela sempre faz.
-Claro que precisava, tia! A
senhora sabe que não consegue se levantar assim! –Eu tentei falar “Não foi
nada!” da maneira como sempre faço.
-Ah, Alex... –Ela me abraçou
forte, como sempre fazia quando estava triste.
-Está tudo bem, tia. Tudo
bem... –Eu tentei acalmá-la. Uma pergunta repentina me veio na cabeça e eu tive
que soltar –O que seria esse “O Grande Dia” com minha mãe? –Ela fez uma cara
séria e ela se soltou de meu abraço, de repente, e seu tom de voz também ficou
sério quando foi me responder.
-Nada não. Coisa nossa. Um
dia vai saber, não se apresse. –Resolvi ficar quieta, questionar minha tia é
algo perigoso –Eu vou ali no supermercado rapidinho, ok? –Ela mudou de assunto.
-Tudo bem, pode deixar! –Ela
saiu.
Fui para o meu quarto, mas parei
na porta da cozinha, em um só movimento apertando a minha mão esquerda com a
direita. A palma esquerda queimava forte, ardia muito, meus olhos estavam
queimando de tanta força que eu os apertava pela dor.
De repente, a dor parou. Sem
aviso, sem diminuir. Subitamente e sem motivo.
Encostei na parede, de olhos
ainda fechados, mas levemente. Minha mão direita ainda apertava a esquerda,
mesmo a dor tentando parado. Respirei fundo, e de olhos entreabertos peguei um
copo da mesa. Dei dois passos em direção a geladeira para pegar água e ouvi:
“Acalme-se. Está tudo bem.”
Dei um grito, afinal, não
tinha ninguém em casa, e a voz não era parecida com a de tia Odete, embora seja
feminina. O gato dela, Chocolate, até apareceu e deu um miado agudo e curto.
Choco é um vira-lata branco, totalmente de branco mesmo, apesar do nome.
Embora ainda estivesse
apenas alarmada, perguntei:
-Quem está aí? O que você quer? –O
silêncio permaneceu até demais. Não ouvi mais o barulho dos carros na Avenida
Paulista lá embaixo, não ouvi som do rádio de nossos vizinhos barulhentos, não
ouvi nada. Era como se o som estivesse nulo. De repente, ouvi novamente, com um
eco:
“Eu não quero seu mal, se acalme!”
-Acalmar? –Me enraiveci, não era
nem um pouco normal falar com o nada e ele te mandar se acalmar –Como posso me
acalmar?
“Então tudo bem. Não te falo o que
sei...”
-Eu não quero saber. Seja lá quem
for, me deixa! –Para minha surpresa, a voz respondeu:
“Vou deixar, mas ainda vai
precisar de mim...”
-Não vou não! –Rebati, mas não
responderam.
Ouvi um barulho na porta e
minha tia entrou na cozinha, carregando algumas sacolas de compras.
-Voltei! Tudo bem? –Fiquei em
dúvida se deveria falar alguma coisa, então apenas respondi:
-Sim, tudo bem! –E entrei
rapidamente no banheiro, rodando as chaves para trancar o máximo de vezes
possíveis.
Encostei novamente na
parede, suspirando. Será que eu realmente deveria ser aquilo? O que teria acontecido
para a palma de minha mão arder tanto assim? Teria algo com a voz maluca?
Arriscando, fechei forte os
olhos e abri a mão. Depois, fui abrindo os olhos devagar, e ficando boquiaberta
também.
Como uma tatuagem, uma
marca, algo assim. Um círculo com um círculo no centro, com várias linhas
ligando ele ao aro. Não sei o que significa, mas apareceu de repente, então tem
um motivo.
Nem me desesperei tanto e só
pensava em uma coisa: Tia Odete deve saber.